28.11.2020: Chega: “O Tribunal Constitucional não pode contentar-se com uma avaliação meramente formal do que se encontra escrito no programa ideológico”

 

A Democracia, como regime político, “não é o regime do ‘vale tudo’ e tem de fixar os mínimos existenciais para evitar a sua destruição por dentro”, explica o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia

Depois de criado um partido político, mesmo sem alteração ideológica ou estatutária, há comportamentos posteriores que podem comprometer uma apreciação positiva e fazer resvalar a organização para uma condição de inconstitucionalidade superveniente, afirma Jorge Bacelar Gouveia, constitucionalista e professor catedrático de direito. “Havendo alarme na opinião pública, na dúvida, deve ser suscitado o processo Tribunal Constitucional”, afirma. Mas estando em causa um partido que apenas tem um ano de atividade parlamentar, ainda é cedo para se pensar numa nova avaliação do Tribunal Constitucional, entende.

O art. 46.º da Constituição da República Portuguesa proíbe a criação de partidos e organizações “racistas ou que perfilhem a ideologia fascista”. A Lei dos Partidos, no artigo 8º, repete esta exigência. Em que circunstâncias pode ser pedida a ilegalização ou extinção de um partido político?

Estas regras são pouco habituais em Direito Comparado porque são contrárias ao princípio democrático, o qual encerra em si o que se designa por “Paradoxo da Democracia”: ser o único regime político que aceita ser destruído “por dentro”, ou seja, o único que admite ideias que ponham em causa a sua subsistência.  Mas ainda bem que a Constituição Portuguesa e a Lei dos Partidos Políticos contemplam estas exceções à liberdade de organização associativa e à liberdade de criação pluralista de partidos políticos. Assim é porque a Democracia, como regime político, não é o regime do “vale tudo” e tem de fixar os mínimos existenciais para evitar a sua destruição “por dentro”. É esse o fito destas normas, que se inspiram no instituto alemão da proibição de partidos políticos (Parteienverbot), através do qual o Tribunal Constitucional Alemão inconstitucionalizou dois partidos – um nazista e outro comunista – nos anos 50 do século passado.

E como funciona o processo?

As condições para a extinção dos partidos políticos decorrem da verificação tanto pelo programa como pela prática política do preenchimento dos conceitos referidos. Havendo esses indícios, é o Ministério Público, como defensor da “legalidade democrática”, que deve intentar uma ação no Tribunal Constitucional com vista à extinção do partido político que entenda estar nessas condições.

Mas o que é necessário para se considerar um partido racista ou fascista? As duas condições não são cumulativas. Como se faz esta avaliação?

Sim, são conceitos distintos, e não são cumulativos. Pode haver racismo sem fascismo e vice-versa, embora a ideologia fascista – que se apoia muito na exacerbação do conceito de nação – tenha muitas vezes elementos racistas, estes diretamente ligados à invocação de uma suposta “superioridade racial” da nação. A distinção é intelectualmente cristalina, ainda que na práxis as coisas sejam mais espinhosas. A avaliação quanto ao preenchimento desses conceitos, em ordem à extinção do partido político, carece de ser global, todos os elementos contando: desde o programa político-ideológico àsvotações realizadas, dentro e fora do partido, passando pelas opiniões expressas pelos seus dirigentes e militantes. O problema é que esta verificação se apresenta difícil – senão mesmo impossível – porque ocorre a “subtil habilidade” de nada se dizer a este respeito no programa partidário, sendo o assunto “transferido” para o terreno muito mais movediço da prática política, e nessa hipótese acantonando-se por vezes à opinião de certos dirigentes. E afigura-se problemático extinguir um partido apenas por causa da opinião de alguns dos seus militantes, se bem que o caso mude de figura quando são militantes com maiores responsabilidades – por exemplo, ao nível da sua liderança efetiva – a terem essas posições e comportamentos.

A Lei nº 64/78 tem 42 anos, mas ainda está em vigor para esclarecer o que é a ideologia fascista?

Sim, ainda está em vigor e é um diploma importante na definição do fascismo, se bem que desatualizada, porque o fascismo evoluiu bastante e assumindo hoje outras formas. Sobretudo contra a perda da soberania em favor de estruturas internacionais pouco ou nada democráticas na sua legitimidade popular e cidadã, ganhando nesse contexto uma maior aceitação político-social, assim se resgatando o Estado do seu conceito fundante de estrutura unicamente soberana que era, como se pôde ver na História Universal com o nascimento do Estado Moderno.

E o que deve ser tido em conta nesta avaliação – todos os atos, declarações e propostas do partido ou organização?

Eu diria que “tudo”, nunca devendo o TC contentar-se com uma avaliação meramente formal do que se encontra escrito no programa ideológico. De resto, se fosse apenas isso, decerto pouco adiantaria no caso de um partido recém-criado, sobre o qual pouco tempo passou após o TC ter produzido um juízo positivo quanto à sua admissibilidade. Assim sendo, é necessário indagar a respeito de outros elementos que possam contribuir para o preenchimento daqueles conceitos, aqui no sentido em que a Lei das Organizações Fascistas auxilia a explicitar, referindo-se a discursos, comunicados, votações ou comportamentos. Naturalmente que isto só pode ser feito no âmbito de um processo judicial, que correrá os seus termos no próprio do TC, sendo este um dos poucos casos em que este alto tribunal aprecia uma relevante e significativa dimensão da matéria de facto, com um julgamento a tal respeito, feito no plenário do TC.

“Depois de criado o partido político, mesmo sem alteração ideológica ou estatutária, comportamentos posteriores podem comprometer essa apreciação positiva e fazer resvalar o partido para uma condição de inconstitucionalidade superveniente”

Pode-se pedir ao Tribunal a avaliação da ideologia, ou tem de ser pedida imediatamente a extinção do partido?

A verdade é que a avaliação da ideologia já foi feita pelo TC quando o partido em causa foi registado, ato que não é apenas de mera certificação formal, por exemplo, quanto aos requisitos documentais ou o número de assinaturas. O registo de um partido político no TC e o facto de este órgão o admitir significam sempre um juízo de concordância com a conclusão de que a sua ideologia não viola a Constituição. Só que essa avaliação foi feita num momento inicial, apenas tendo presente o programa, texto que é necessário apresentar para esse efeito. O que sucede é que, depois de criado o partido político, mesmo sem alteração ideológica ou estatutária, comportamentos posteriores podem comprometer essa apreciação positiva e fazer resvalar o partido para uma condição de inconstitucionalidade superveniente.

As várias declarações de André Ventura acerca dos ciganos, como a sugestão de confinamento especial ou as declarações acerca da sua impunidade e subsidiodependência, tal como a ideia reiterada de querer “resolver o problema dos ciganos”, podem ser consideradas racistas e xenófobas? A multa agora aplicada pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial reforça esta ideia?

Não me vou pronunciar sobre as afirmações de um líder partidário, mas esta pergunta suscita o relevante tema de a subsistência de um partido político – desde que não racista ou xenófobo – ter de conviver com a liberdade de expressão, por mais estapafúrdia que seja. Muitas vezes a dificuldade – ou a “habilidade”, se se quiser dizer assim – está em separar o que é dito a título oficial do que é dito por um militante ou simpatizante, que não deixa de ter a sua liberdade de opinião, que tem os limites estabelecidos na lei criminal, e às vezes invocando-se o estatuto de simples cidadão. Por outro lado, o discurso político é também “virtuoso” no uso de expressões que, sendo proferidas a título individual, suscitam no recetor da mensagem uma diversa perceção significante, dando azo a interpretações generalizantes que nunca são assumidas pelo emissor literal da mensagem, num exercício hermenêutico de complexidade elevada.

Mas e as propostas de instaurar a prisão perpétua e castração química de pedófilos? São inconstitucionais?

São duplamente inconstitucionais: são inconstitucionais, primeiro, porque não estão previstas na Constituição; e nunca o poderão ser porque são opções que tolhem os limites materiais da revisão constitucional e até a dignidade da pessoa humana, que – além de evidente princípio de Direito Constitucional – é ainda um valor suprapositivo que se impõe à consciência coletiva.

“As propostas de instaurar a prisão perpétua e castração química de pedófilos são duplamente inconstitucionais”

As declarações sobre a necessidade de reforço da autoridade dos agentes de segurança e o nacionalismo exacerbado são ideias consideradas fascistas?

Não parece e são opiniões e propostas que se inserem na praxis política.  Todavia, não se deixa de notar que são afirmações que, partindo de factos reais pontuais, podem pecar pelo defeito da generalização. E, além disso, podem ser vistas como uma grande incongruência com o facto de Portugal ser um dos países mais seguros do mundo, o 3º mais seguro segundo o Global Peace Index.

Associar a ideia de pedofilia a Paulo Pedroso, que não foi condenado (e até ganhou depois a ação instaurada junto do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos contra o Estado português), viola frontalmente o princípio de presunção de inocência. Para um líder de um partido político, fazê-lo reiteradamente (como acontece também com Ricardo Salgado e José Sócrates, que praticamente dá como culpados) não ofende a Constituição?

Claro que a Constituição tem o princípio da presunção da inocência dos arguidos e ainda bem. Só que essa associação de ideias deve ser observada sobretudo do prisma da ofenda à honra dos visados, honra que fica ferida quando se lhes imputa a prática de crimes, que só “existem” quando tais pessoas forem alvo de uma sentença condenatória com trânsito em julgado.

E quanto à ideia de instaurar uma quarta República “antissistema” – isso não pode ser visto como uma ideia “revolucionária“ ou um ataque frontal à Constituição em vigor?

Depende. Como ato discursivo, não tem esse desvalor, até porque nem sequer nos entendemos quanto a saber se estamos na III República – essa é a minha opinião, a maioritária, aliás – ou se ainda estamos na II República – que é a designação preferida por quem entende que o Estado Novo, sendo formalmente uma república e tendo traído o seu espírito fundamental, jamais mereceria tal epíteto. Como ato de conduta, obviamente que pode configurar um crime de “Atentado contra a Constituição da República”, crime que está previsto no art. 8º da Lei dos Crimes de Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos. Contudo, para ser crime, é necessário preencher outros elementos do tipo criminal em questão, o que se duvida que tenha sucedido até ao momento.

Dito tudo isto, com esta matéria de facto, e na sua opinião pessoal, deveria o TC apreciar a constitucionalidade do Chega?

Havendo alarme na opinião pública, na dúvida, deve ser suscitado o processo Tribunal Constitucional, decisão que cabe ao Ministério Público.

E estariam reunidas condições para se declarar uma extinção com os factos que existem hoje?

Tenho dúvidas porque se trata de atos discursivos que nem sequer significam toda a mensagem do partido, devendo o assunto – para não se acusar ninguém de censura de opinião – aguardar por mais algum tempo de praxis política, estando em causa um partido que apenas tem um ano de atividade parlamentar.

Fonte: Visão