27.3.2020: Bacelar Gouveia:”É muito difícil fazer oposição porque fica tudo reduzido a um único assunto”
Entrevista ao Diário de Notícias
Bacelar Gouveia: “É muito difícil fazer oposição porque fica tudo reduzido a um único assunto”
O constitucionalista e ex-deputado do PSD afirma em entrevista ao DN, a partir do sofá da sua casa, que as medidas do estado de emergências são equilibradas. Mas mostra-se preocupado com as restrições à liberdade religiosa e ao eventual encerramento dos escritórios de advogados. E afirma que a oposição tem de tirar “coelhos da cartola” para apresentar medidas no pós-pandemia.
Defendeu que o estado de emergência devia ter sido decretado mais cedo. Foi tardia esta medida extrema decretada pelo Presidente da República?
É verdade que defendi que devia ter sido decretado mais cedo, mas felizmente não foi decretado tardiamente. Julgo que ainda fomos a tempo de evitar a expansão da epidemia. Por outro lado, é de assinalar o facto de os portugueses terem-se antecipado à declaração do estado de emergência e, depois da sua declaração formal, estarem a cumprir religiosamente as obrigações e as recomendações das autoridades sanitárias no sentido de preservarem o risco de contágio.
O decreto do Presidente salvaguardou todos os direitos dos cidadãos?
O estado de emergência implica sempre limitar alguns dos nossos direitos, mas a escolha dos direitos que são afetados foi criteriosa e equilibrada. É verdade que há alguns direitos que não podem ser suspensos, como o direito à vida, a liberdade religiosa, mas aqueles que foram escolhidos foram-no bem, sem exagero. E depois o Presidente da República deu ao governo a possibilidade de acomodar em concreto as medidas que são adotadas.
Contudo, têm subsistido algumas dúvidas ainda sobre a aplicação do estado de emergência.
Sim, uma delas tem que ver com a liberdade religiosa, que não pode ser suspensa com o estado de emergência. A Constituição é muito clara a proteger esse direito que não pode ser suspenso nem no estado de sitio nem no de emergência. Chamamos-lhes direitos absolutos, que estão previstos no artigo 19.º, n.º 6, e um deles é a liberdade de consciência e de reunião. Se a declaração de emergência suspende as celebrações religiosas quando haja aglomeração de pessoas, essa medida pode ser excessiva se implicar também as celebrações religiosas dentro de espaços privados das confissões religiosas. Admitiria que houvesse alguma restrição no espaço público, procissões, missas campais. Mas o decreto do governo proíbe as celebrações religiosas mesmo nos espaços privados, com base no conceito da acumulação de pessoas. E são duas, três, vinte ou cem?
“Se a declaração de emergência suspende as celebrações religiosas quando haja aglomeração de pessoas, essa medida pode ser excessiva se implicar também as celebrações religiosas dentro de espaços privados das confissões religiosas.”
O governo poderia ter definido um número de pessoas que se podiam juntar para uma celebração religiosa num espaço privado?
Se o governo permite que nos centros comerciais ou nos locais de trabalho possa haver aglomeração de pessoas, desde que haja uma distância social, porque não adotou a mesma regra para as celebrações religiosas? Parece que há aqui um regime mais duro para o exercício de práticas religiosas do que, por exemplo, para as fábricas, que continuam a laborar com 300 ou mais pessoas. Não pondo em causa a boa-fé das medidas, vejo com reserva esta limitação da liberdade religiosa nos espaços privados das confissões religiosas.
E há mais alguma limitação polémica?
Há outro aspeto que me tem deixado preocupado, que é o facto de ter ouvido dizer que iam ser encerrados os escritórios de advogados. Esses escritórios não podem ser encerrados, até porque não são estabelecimentos abertos ao público. Os advogados devem manter os escritórios abertos, apesar de muitos já estarem em teletrabalho, porque há uma parte da advocacia que não pode ser feita dessa forma. E porque é que isso é importante? O advogado é um agente de fundamental da justiça e, na declaração do estado de emergência se houver violações e excessos praticados por parte das autoridades, a quem é que os cidadãos podem recorrer para assegurar os direitos fundamentais? A quem se poderão queixar-se e quem os poderá defender? São os advogados. É verdade que a Procuradoria-Geral da República [PGR] e a Provedoria da Justiça estão a funcionar, mas os advogados aqui têm um papel muito importante. De acordo como estatuto da Ordem dos Advogados, compete a estes profissionais serem agentes da justiça e defensores das liberdades. Se forem impedidos de ir aos seus escritórios, de receberem pessoas que se forem queixar da violação dos seus direitos, então isso significa que o estado de emergência está a pôr em causa um aspeto fundamental do Estado de direito, que é o acesso à justiça.
Esse atendimento aos cidadãos não pode ser feito à distância, nomeadamente por videoconferência?
Duvido, porque muitas vezes são pessoas que não têm acesso a esses meios, outras vezes são assuntos de natureza pessoal. Há um conjunto enorme de situações e admito que algumas possam ser tratadas à distância, mas outras não. E há um aspeto muito importante: quem contrata um advogado quer conhecê-lo cara a cara, a relação do advogado com o seu cliente é de natureza pessoal, é uma relação de confiança. O governo tem de esclarecer esta situação.
“Se os advogados forem impedidos de ir aos seus escritórios, de receber pessoas que forem queixar-se da violação dos seus direitos, então isso significa que o estado de emergência está a pôr em causa um aspeto fundamental dos Estado de direito, que é o acesso à justiça.”
A PGR e a Provedoria não são suficientes para garantir os direitos durante o estado de emergência?
A lei prevê que sejam essas as entidades que o fazem. Mas o estado de emergência não é um espaço de não direitos, em que as autoridades fazem o querem. É um estado em que os direitos ficam limitados mas em que ainda persistem alguns. E há regras, não é à balda. Não estou a dizer que estejam a acontecer atropelos, mas se houver excessos e abusos há maneira de os cidadãos se defenderem. Os tribunais não estão fechados. É verdade que houve suspensão de prazos, mas todos os processos urgentes são atendidos.
O facto de o governo não ter decretado a quarentena obrigatória nessa primeira fase do estado de emergência abriu porta àquelas imagens que se viu de aglomeração de pessoas na marginal da Póvoa do Varzim?
Em geral, as entidades, o governo e o Presidente da República têm agido bem. Não devemos empolar demasiado os factos porque violações destas de leis há sempre em Portugal, a comunicação social faz sempre um maior alarido destas situações. Isto são fenómenos isolados.
Poderão nalguma altura estar em causa alguns dos direitos fundamentais dos cidadãos? Há países que endureceram as medidas…
Eu fiz a minha tese de doutoramento precisamente sobre essa matéria. Nunca pensei que ao fim de alguns anos estivesse a viver o que estudei no papel. O que eu vejo olhando para outros países? Vejo uma maior dureza das medidas, um maior desânimo por parte das populações e uma atuação mais violenta por parte das autoridades, até às vezes desproporcionada em relação ao risco da pandemia. Admito que há outros países em que, por circunstâncias culturais, as medidas devam ser mais drásticas. Portugal até pode servir de exemplo a vários níveis, o exemplo da intervenção das autoridades com normas regradas, justas e proporcionadas e o dos cidadãos que até se anteciparam ao cumprimento das restrições que foram proferidas mais tarde pelo poder político.
Como professor universitário, que desafios tem enfrentado para dar as suas aulas?
Acho que tem sido uma grande descoberta para todos. Sou professor na Universidade Nova e da Autónoma, portanto tem sido para mim uma descoberta dar aulas através de meios telemáticos, ainda que não seja bem a mesma coisa. A exposição das matérias nas aulas teóricas correm bem, eu próprio tenho alguma experiência em falar. Na comunicação social posso até estar mais à vontade, mas depois o problema que se pode pôr é na questão das dúvidas, nalgum comentário com o aluno, nalgum caso prático dessa aula. Quando se fala para uma câmara, o professor naturalmente está mais tenso, é mais formal, com o receio de cometer alguma inconveniência e depois fica gravada para a história. O ensino à distância pode substituir nestas circunstâncias o presencial, não é a mesma coisa porque retira espontaneidade. Agora, é uma oportunidade de podermos comunicar mais através de meios telemáticos, que pode ser um bom componente ao ensino presencial mas sem substituição de um pelo outro.
“Portugal até pode servir de exemplo a vários níveis, o exemplo da intervenção das autoridades com normas regradas, justas e proporcionadas e o dos cidadãos que até se anteciparam ao cumprimento das restrições que foram proferidas mais tarde pelo poder político.”
Foi também deputado do PSD. É possível fazer oposição em tempo de uma crise extrema como esta?
Acho difícil se for uma oposição responsável. O Dr. Rui Rio, e o PSD, que desde a primeira hora disse que apoiaria a decretação do estado de emergência, a meu ver fez muito bem. É muito difícil fazer oposição responsável porque numa situação de crise a agenda política fica reduzida a um único assunto e as pessoas deixam de ficar preocupadas com os outros assuntos, o mundo deixa de ser a cores e fica preto e branco. O que se discute é saber se as medidas x e y são exageradas, se é de mais ou é de menos na conjuntura da emergência. Apesar de tudo, acho que os partidos políticos – em particular o principal partido da oposição, que é histórico em Portugal, o PSD – têm aqui uma oportunidade de ouro de revelar nas situações de crise, e mantendo a sua estrutura de oposição responsável, a capacidade de tirar algum coelho da cartola para apresentar nesta situação de crise e sinalizando o que será preciso fazer. Até porque a crise também mostra as fragilidades do próprio sistema. A crise mostra coisas que nunca vimos, mas também acentua o que já estávamos a ver. A oposição tem este tempo para estudar mas também para sinalizar as coisas que se revelaram mais frágeis do que já estavam, e então reorganizar. Um dos primeiros pontos é o da segurança, que é um tema do século XXI. Já não falo da segurança de criminalidade, falo da segurança humana, da segurança contra as doenças, a chamada biossegurança, a segurança ambiental, cibersegurança. Tudo isso mostra que não estamos preparados para enfrentar os desafios que hoje a segurança nos cria em termos globais e nos conceitos da segurança humana. Penso que isto dá-nos oportunidade para reorganizar os nossos sistemas de governo e as nossas estruturas de atuação para enfrentar e para estarmos em modo de prevenção relativamente a questões ligadas à segurança sanitária, mas pode haver outros, segurança ambiental, cibernética, etc., que podem surgir. Por outro lado, também mostra algumas fragilidades nas ações que existiam no Serviço Nacional de Saúde; estamos num esforço muito grande e inegável, o que mostra que é preciso repensar toda a articulação entre a parte pública e a parte privada da saúde em Portugal, assim como é essencial que sejam estabelecidos compromissos por parte das misericórdias e das IPSS. O terceiro aspeto é o da ação económica, que, manifestamente, tem de ser cuidada de outra forma. E, porventura, a solidez financeira que Portugal se reclamava de ter não era assim tão grande como se julgava. Toda esta crise mostra que Portugal ainda não fez as reformas estruturais de que precisa.
Portanto, não embarca naquela ideia do primeiro-ministro de que perante um “tsunami” não há mecanismos que travem a falência de empresas e o crescimento do desemprego?
Acho que o Estado tem de existir para dar segurança e bem-estar aos cidadãos. Compreendo que o governo esteja preocupado em responder imediatamente às questões sanitárias, pois é prioridade de todos salvarmos a pele, mas há medidas que podem ser tomadas e que podem dar certas orientações para que a médio prazo se possa dar mais robustez à economia.
A oposição tem este tempo para estudar mas também para sinalizar as coisas que se revelaram mais frágeis do que já estavam, e então reorganizar.
E a União Europeia (UE) teve uma ação concertada perante a pandemia ou mais uma vez falhou na resposta?
Faço uma avaliação muito negativa da atividade de Bruxelas. Por um lado, abandonou a Itália de uma forma escandalosa, quando é um dos países fundadores da UE, são 70 milhões de habitantes. Por outro lado, não percebeu que a liberdade de circulação tinha de ser imediatamente fechada dentro das suas fronteiras. A doença não estava fora, estava dentro dela do ponto de vista da expansão deste vírus. Fechar as fronteiras externas da UE e não fechar as fronteiras internas, onde estava precisamente o foco da infeção, pareceu-me uma coisa bastante estranha e ridícula. A UE mostrou que não está preparada e que não tem meios de intervenção. Há um sistema de gestão de crises, mas não tem dinheiro e é uma coisa simbólica que só serve para fazer pequenas coisas humanitárias e pouco mais. A UE não tem capacidade para intervir numa crise sanitária séria.
Após esta primeira fase da pandemia, e sabendo-se que vai existir uma segunda, pensa que a UE aprenderá alguma coisa para se coordenar melhor?
Apesar de tudo tem havido alguma coordenação, por exemplo em relação aos sistemas de saúde europeus; há um Cartão Europeu de Saúde e qualquer cidadão pode dirigir-se a qualquer instituição pública em qualquer outro país da UE. Não sei se isso chega porque isso é apenas um apoio para quem vai de viagem para um país da UE. Entendo que deve haver aqui uma estratégia de saúde europeia preventiva e sobretudo uma estratégia que possa identificar as debilidades naturais dos vários sistemas nacionais de saúde, em equipamentos como os ventiladores, mas haverá outras dificuldades. Portanto, o que devem fazer agora em paralelo com a segurança é a questão das infraestruturas críticas, ou seja, será necessário que a UE identifique as infraestruturas de saúde essenciais, fazer contas, ou obrigar o Estado a ter essas estruturas para prevenirem. E depois, uma maior articulação de fluxo de funcionários da UE, de dinheiro, de medicamentos… intervenção. E também nos meios tecnológicos essenciais para recuperação na área da saúde.
A pandemia expôs o lado negro da globalização?
Houve um paradoxo, houve uma globalização na informação para prevenir a chegada do vírus, mas a verdade é que nunca ninguém percebeu que era preciso agir imediatamente para evitar a sua expansão.
Mas irá esta pandemia mudará o modo como o mundo se organiza e interage?
Agora haverá um período em que as pessoas vão viajar menos e haverá algum cuidado. A minha resposta é “nim”. Se novas pandemias se tornarem frequentes, é evidente que haverá alterações, mas se isso desaparecer nos anos mais próximos o mundo voltará ao normal.