Segurança Sanitária e Estado de Emergência

Jorge Bacelar Gouveia, Constitucionalista

1. Quando, em 1999, defendi a minha tese de doutoramento sobre o estado de exceção constitucional, sob a inteligente e contundente arguição de Marcelo Rebelo de Sousa, estava longe de pensar em escrever hoje, volvidos 21 anos, este artigo de opinião.

Na verdade, a exceção constitucional, sendo um tema clássico da Teoria da Constituição, é um daqueles assuntos que ninguém deseja tratar senão pelos livros…
Isto reconhecendo, embora, toda uma longa e árdua história jurídico-política de afirmação do direito de necessidade do Estado perante os múltiplos riscos e ameaças que a evolução da Humanidade tem vindo a multiplicar.

Mas a sensação com que se fica ao revisitar este tema é a sua permanente inadequação a uma realidade constitucional – a vida de todos nós – que se encontra em constante mutação.

2. Essa ideia da inadequação das estruturas de defesa extraordinária da Constituição já tinha sido muito notória no tempo da intervenção estrangeira sobre as nossas finanças com a troika e o PAEF.

Falou-se em muitas inconstitucionalidades, sobretudo pelos cortes e redução de salários, sem que para o efeito tivesse sido declarado qualquer estado de exceção, de resto nem sequer previsto na Constituição em tais termos.

A ausência de mecanismos expressos para adaptar a ordem constitucional a uma realidade económico-financeira de crise gerou uma árdua busca na legitimação de decisões legislativas então decretadas.

O pior foi a dificuldade que o Tribunal Constitucional teve para encontrar um diapasão certo para dirimir um prolema que de económico-financeiro logo se tornou político-social, com a probabilidade de se ver “arrastado” para o pantanoso terreno da judicialização constitucional da Política.

A meu ver, o Tribunal Constitucional, nesse período, revelou uma maturidade notável, porventura enfrentando um dos momentos mais ásperos da sua vida institucional.

3. Eis que o COVID-19 nos coloca noutra situação dilemática de preservação da legalidade constitucional num ambiente em que é necessário manter a segurança sanitária dos cidadãos.

Jamais o Estado se poderá demitir de garantir a proteção da saúde dos portugueses.

Neste contexto, a segurança que o Estado deve prover como bem público já nada tem de ver com as dimensões clássicas da segurança externa ou interna, mas antes se prende com o que tem sido chamado pelos Estudos de Segurança como “novas seguranças”.

E quem fala em segurança sanitária, fala de muitas outras, para as quais temos vindo a acordar: a segurança alimentar, a segurança biológica, a segurança cibernética, a segurança ambiental ou a segurança energética.

Não por falta de aviso porque desde 1994 as Nações Unidas bem têm sugerido a mudança de um paradigma: o da segurança político-estadual clássica para o da “segurança humana”, na qual a pessoa é que deve ser o critério fundamental das providências a declarar com vista à sua defesa.

4. Está fora de dúvida questionar a intervenção que se mostre proporcionada para prevenir, minimizar e superar os malefícios do COVID-19.

O problema é outro: é saber da legitimidade e dos limites dessa intervenção, sendo certo que a mera invocação de uma cláusula geral de necessidade – lembrando o que era comum aceitar na Roma Antiga através do princípio “salus publica suprema lex” – pode tornar-se tanto perigosa porque excessiva quanto injusta porque violando direitos fundamentais elementares.

Decerto que alguns obstáculos podem ser superados a uma intensidade mais baixa ao nível do estado de necessidade administrativa, quando se tornar imperioso flexibilizar procedimentos decisórios da Administração Pública, sobretudo na aquisição de bens e serviços urgentes.

Mais complexa será a limitação dos direitos constitucionais, quando estiverem em causa as nossas liberdades de circulação, de entrada e saída do território nacional, o nosso direito ao salário, o direito ao geral funcionamento dos organismos públicos, etc.

5. A solução é não reconhecer a limitação destes direitos? Não. A solução é assumir a gravidade do assunto e agir em conformidade com as regras constitucionais que existem sobre o estado de emergência, na sua versão de calamidade por epidemia, nos termos do art. 19º da Constituição.

Ao invés do que sucedeu no tempo da troika, agora não pode haver a desculpa da ausência de mecanismos constitucionais e legais, ainda que se afigurem de duvidosa constitucionalidade em certos casos.

Não podem é os titulares dos órgãos de soberania deixar de ativar as soluções para se conseguir uma correta suspensão daqueles direitos no sentido da salvaguarda dos direitos à vida e à saúde dos cidadãos.
Por incrível que pareça, há vantagens na declaração formal de tais limitações: a certeza da extensão da limitação dos nossos direitos pelos poderes públicos, como a aceitação da legitimidade da sua intervenção.

O pior que poderá acontecer – e vamos esperar que não seja isso o que se preanuncia – é os máximos responsáveis políticos deixarem cair o odioso de tão drásticas decisões nos dirigentes intermédios da Administração Pública, que fazem a “despesa” de agir por conta de quem deve assumir – agora e lá de cima – as suas responsabilidades, não devendo temer o seu exercício, por mais impopular que seja.

Espero, por isso, a conveniente decretação do estado de emergência por razões sanitárias, a bem da lisura dos procedimentos e a bem do equilíbrio das medidas a assumir, além de se assegurar a devida e nobre legitimidade dos respetivos protagonistas no contexto do nosso Estado de Direito Democrático.

Fonte: Público