10.3.2016: Jorge Bacelar Gouveia: As tentações de Marcelo

Jorge Bacelar Gouveia: as tentações de Marcelo

alt

MÁRIO CRUZ/LUSA

Irá ser Marcelo Rebelo de Sousa um Presidente corta-fitas? Forçará um bloco central refundador da democracia portuguesa? Irá tratar da “saúde” a Pedro Passos Coelho e ajudar a mudar a liderança do PSD? Ou irá mostrar a sua face de político de centro esquerda? Jorge Bacelar Gouveia tem a certeza, para já, de que será um Chefe do Estado “original”

I.

A eleição de Marcelo Rebelo de Sousa para Presidente da República – a quem endereço, publicamente, as minhas humildes felicitações – foi porventura a decisão mais singular do Povo Português em Democracia na III República, a vários títulos:

– singular, primeiro, porque reconheceu o carácter suprapartidário do militante n.º 3 do PSD e seu antigo líder;

– singular, segundo, porque aceitou alguém que, tendo construído e pensado este sistema político-constitucional desde a Assembleia Constituinte, o criticou como se ao mesmo fosse alheio; – e singular, terceiro, porque caucionou uma estratégia eleitoral arriscada, aparentemente caótica, sem máquinas, sem almoços e jantares, e sobretudo sem cartazes e carros de campanha.

II.

Além das suas superiores qualidades intelectuais e humanas sobejamente conhecidas, agora importa saber como vai ser o Marcelo Presidente, no âmbito do estatuto em que a partir de ontem ficou investido.

Já ouvimos de tudo:

– que não se vai incomodar e será meramente representativo e corta-fitas;

– que vai forçar um bloco central refundador da democracia portuguesa;

– que vai “tratar da saúde” a Pedro Passos Coelho e mudar a liderança do partido político que fundou;

– que mostrará a sua verdadeira face, alguém do centro-esquerda e verdadeiro social-democrata que, nascido em “berço salazarento”, sempre do mesmo se distanciou, para o que muito contribuíram as suas duas principais grandes culturas: a de professor e a de jornalista.

III:

Não é fácil fazer previsões, até porque Marcelo é, por definição de carácter, bastante imprevisível. Mas esse era o Marcelo anterior a ser Presidente da República.

O Marcelo Presidente da República será mais previsível, quanto mais não seja porque forçado a encaixar-se numa função constitucional que ajudou a definir e a interpretar ao longo destes 40 anos.

Simplesmente, tal não o inibirá de ser um Presidente original, considerando os respetivos poderes.

Isso já se viu na sua tomada de posse: aparecer a pé, não convidar presidentes estrangeiros, ser poupadíssimo nos habituais gastos faustosos da cerimónia de investidura.

E assim será no quotidiano do seu percurso presidencial em matéria de costumes: na sua informalidade, no seu bom humor, na sua disponibilidade, na sua resiliência, na sua permanente inquietude…

IV. Mas essa originalidade igualmente se vai reflectir na concretização das competências que passou a exercer como Chefe do Estado, umas explícitas na Constituição, outras invisíveis e apenas detectáveis sob certo olhar.

É verdade que a evolução do sistema de governo em Portugal se tem degradado num parlamentarismo progressivo, bem diverso dos primeiros tempos: por causa dos poderes presidenciais que deixaram de existir nas sucessivas alterações constitucionais como por causa da tradição constitucional que se consolidou por costume em torno de um cargo de natureza suprapartidária e como “reforma senatorial” da vida política pós-partidária.

Só que se desenganem aqueles que acreditam que Marcelo deixará de cair em várias tentações no exercício dessas competências, que ainda existem e que serão usadas para a justa “represidencialização” do sistema de governo.

A primeira tentação será com o poder de dissolução presidencial, que politicamente tem ficado cada vez mais condicionado. Não o deixará de acionar na obtenção de uma solução parlamentar estável, mesmo na probabilidade de esse exercício resultar numa séria desvantagem para os partidos da sua base político-ideológica, em nome da imparcialidade presidencial.

A segunda tentação será a de forçar, informalmente, uma profunda reforma do sistema político, com a inclusão de novos atores sociopolíticos, diluindo a força dos partidos tradicionais e dos seus aparelhos, através da indicação das muitas mudanças que há tantos anos se reclama, nada se tendo feito, mudanças que o próprio Marcelo tentou infrutiferamente na importante revisão constitucional de 1997.

A terceira tentação será a de reinventar o discurso político, com intervenções rápidas, pontuais, firmes no sentido de mostrar a sua proximidade com o cidadão comum, beneficiando da experiência que obteve na comunicação social e de excelente comunicador que sempre foi, ridicularizando o discurso partidário – cada vez mais redondo e imperceptível – vazio e distante da defesa dos verdadeiros problemas reais das pessoas.

A quarta tentação será a de ser um co-legislador, de par com a Assembleia da República e o Governo, antecipando muito daquilo que virão a ser as decisões formais daqueles órgãos de soberania, na base de um estugado princípio de solidariedade institucional, não tanto pela ameaça do uso do veto político, como essencialmente pela argumentação e soluções que previamente comunicará nas reuniões prévias que regularmente acontecerão com os representantes parlamentares e governamentais.

A quinta tentação será fazer em matéria de política externa a quadratura do círculo da revalorização da óbvia “pluricontinentalidade” de Portugal, arrostando com os grupos de interesses instalados que forçam o nosso país a decidir-se por rumos inconciliáveis, como a europeização intensiva e burocrática, a americanização político-cultural ou a lusificação cultural de fraco pendor económico, com o choque que isso vai provocar na ausência completa da orientação da política externa portuguesa, que é incumbência primordial do Governo.

V.

Daqui a cinco anos veremos se estas tentações se tornaram em pecados capitais – ou se, pelo contrário, não se consumaram, fazendo de Marcelo um Presidente como todos os outros. Aqui o pecado capital valerá o Céu…

 

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

Fonte: Diário de Notícias