02.04.2016: “Constituição: 40 anos depois”

Constituição: 40 anos depois

40 anos: uma boa idade

1. A Constituição Portuguesa faz hoje anos: 40. Para uma pessoa, 40 anos seria uma boa idade: não se é velho, mas também não se é imaturo… Mas para um texto constitucional, 40 anos não tem o mesmo significado do que para a vida humana.

Nos textos constitucionais do mundo, há e houve de tudo:

– Constituições que duraram e durante muito tempo, cumprindo a sua boa missão, de que é maior exemplo o texto norte-americano (com mais de 200 anos);

– Constituições muito efémeras porque eram demasiado avançadas para o seu tempo, de que é exemplo a 1ª Constituição de Portugal de 1822, que na primeira vigência durou apenas nove meses;

– Constituições que vigoraram muito tempo, mas foram terríveis na perpetuação de sistemas totalitários, como foi o caso da Constituição de 1933 em Portugal; e

– Constituições que pouco tempo produziram efeitos e que igualmente introduziram nefastas disrupções nos respetivos sistemas políticos, ou que por isso mesmo nem sequer chegaram formalmente a vigorar, como sucedeu com a famosa Constituição Francesa da I República, a Constituição da Convenção de 1793, no tempo do Terror de Maximiliano Robespierre.

Numa palavra: infelizmente, a bondade de um texto constitucional não se pode avaliar pela sua duração, ainda que num ambiente democrático o tempo da sua vigência não seja um sinal despiciendo a considerar na sua avaliação.

A “efetividade constitucional” é que interessa.

2. Mais importante do que a duração de um texto constitucional é o tema da sua efetividade porque, se é verdade que o “inferno está cheio de boas intenções”, não é menos certo que o “mundo está cheio de lindas Constituições absolutamente desprovidas de eficácia”.

Daí que o Constitucionalismo Contemporâneo e as suas Ciências, incluindo a Ciência Política, se tenham ocupado bastante deste assunto, dirigindo o seu olhar à necessidade de os textos constitucionais não serem apenas esbeltas formulações literárias privadas de realidade, a decisiva “realidade constitucional” que devem conformar.

A este propósito, ficou famosa a classificação de um grande constitucionalista alemão, Karl Loewenstein, que a certa altura – além da sua não menos famosa neo-teoria da divisão dos poderes, separando apenas entre o poder de decidir e o poder de controlar, superando a trilogia de Montesquieu – identificou três tipos de Constituição: as normativas, as nominais e as semânticas.

Qual o “elixir” do respeito pela Constituição Portuguesa?

3. Não sendo a Constituição Portuguesa de 1976 – hoje aniversariante – uma Constituição com muito tempo de vida, podemos dizer sem rebuço que tem sido uma Constituição normativa, no sentido de que tem sido substancialmente cumprida.

Justiça seja feita que esse é um resultado apreciável no nosso Constitucionalismo de dois séculos, uma vez que houve muitas más experiências a este propósito, quer de experiências efémeras – como também foi o caso da Constituição da I República (além da de 1822) – ou de experiências longas, mas de degradação progressiva dos respetivos regimes constitucionais, como foram estes dois exemplos que, no fundo, se aproximaram desta perspetiva – a Carta Constitucional de 1826 e a Constituição de 1933.

Pergunta-se: qual o segredo de uma certa “longevidade na efetividade” – podemos dizê-lo – da atual Constituição Portuguesa?

O segredo é a combinação de vários fatores.

O primeiro fator é social: a atual Constituição correspondeu a um desejo profundo de democratização e modernização do país, que depois foi insuflando a legitimidade política formal que lidou com o texto constitucional, desejo esse que foi paralelamente acompanhando – como se de um ecossistema se tratasse – o crescimento da “flor do jardim” (a Constituição) com um favorecedor “fresco e jovial ar renovador” (o apoio social).

O segundo fator é humano: a boa preparação dos deputados constituintes e de uma ciência de direito constitucional que despontou em Portugal a seguir ao 25 de abril de 1974, em absoluto contraste com a escassez e a superficialidade dos constitucionalistas anteriores, com algumas honrosas exceções (e não estou aqui a falar de Marcelo Caetano, que foi sobretudo um administrativista).

O terceiro fator é político: a antevisão que os órgãos constitucionais – formalmente a Assembleia da República, mas na prática a classe política e os partidos no seu conjunto – tiveram de perceber a centralidade do texto constitucional e de sempre se preocuparem com a sua permanente atualização, enfrentando de um modo razoavelmente satisfatório os novos desafios que se foram colocando a cada passo da consolidação do sistema político-constitucional do país: a desmilitarização dos órgãos constitucionais (revisão de 1982), as implicações na parte económica do articulado constitucional da integração europeia de Portugal em 1985-1986 (revisão de 1989) e o seu aprofundamento com o Tratado de Maastricht (1991).

O debate constitucional terminou?

4. Apesar de as grandes questões constitucionais terem ficado soterradas nas diversas revisões constitucionais alcançadas em diversos momentos da evolução política da III República democrática, o seguro é que, de vez em quando, se suscitam dúvidas sobre a atual Constituição.

Claro que este debate tem uma “claque minoritária” no tocante ao regime – como os que defendem a instauração da monarquia – ou num certo discurso populista-constitucional de culpar a Constituição da crise geral de deslegitimação da representação política, que normalmente termina com o apelo a uma nova República e a uma nova Constituição.

Não parece avisado colocar as coisas nesses termos, até porque mesmo que houvesse um restart constitucional – e porventura se fizesse uma nova Constituição, como de há anos a esta parte se tem inutilmente falado no Brasil, que tem a excelente Constituição de 1988… – os políticos seriam os mesmos.

E sinceramente não estamos a ver que uma nova república constitucional – esta seria a IV – tivesse como protagonistas os militares ou os professores de Direito Constitucional…

O que parece sensato é considerar que o texto de uma Constituição não é estático, antes dinâmico, devendo estar apto a enfrentar novos problemas, que hoje já são diversos daqueles que a Constituição Portuguesa resolveu com êxito nos anos oitenta e noventa.

Por incrível que pareça, tais problemas estão identificados: a inserção da Constituição num Direito Internacional Global, a afirmação de um espaço político-cultural de identidade lusófona que tarda em consolidar-se, ou a maior dependência da efetividade constitucional das condições económico-financeiras que reduzem drasticamente o alcance das utopias constitucionais.

No resto, são outras reformas – como a do sistema político – que já não dependem da Constituição e que a partir da revisão de 1997 foram remetidas para legislação ordinária reforçada, mas que até à data nunca ninguém teve a coragem de aprovar: redução dos deputados, sistema de governo autárquico, descentralização territorial multiforme, voto preferencial e candidaturas independentes. E outras tantas coisas.

Oxalá que, melhorando o país em termos económico-financeiros, se possa consumar esta tão almejada e sobretudo prometida reforma do sistema político.

Professor catedrático e constitucionalista

Fonte: Diário de Notícias